domingo, 7 de julho de 2019

Ignorância é a tônica!

Se o olhar descrito pelo genial Adoniran Barbosa matava mais que bala de "revorve", a ignorância dos censores indubitavelmente foi mais letal à produção cultural dos tempos sombrios da ditadura. "Tiro ao alvaro" de 1960 foi vetada numa compilação de Adoniran Barbosa em 1973, quando o mesmo, por bloqueio intelectual causado pela censura, resolveu republicar velhas canções em seu disco daquele ano. O "crivo especializado" dos censores vetaram a letra por aquela reproduzir a forma de falar do povo da periferia de São Paulo, baseando-se apenas no preconceito linguístico travestido em questão de "gosto". Típico de regimes totalitários e da tirania do poder absoluto, "se eu não conheço ou não entendo, eu não concordo, então eu proíbo". E assim foi: os censores desconhecendo a poesia nas palavras simples utilizadas para falar de uma situação lúdica do flerte amoroso, inocente, censurou o "Tiro ao Álvaro" talvez pelos furos na "tauba" utilizada para metaforizar o coração apaixonado. Os estudos da linguística apontam para esse problema recorrente e a escola muito tem se esforçado para erradicar tais noções equivocadas que tratam como "erro" as variantes da língua, mais especificamente os falares das classes de menor prestígio social. Geralmente o preconceito em relação às variantes da língua é pautado no padrão linguístico utilizado pela elite intelectual e econômica e pelos seus reprodutores conforme a ideologia vigente. Fiquei imaginando uma adaptação para esse trecho da música do Adoniran em 2019, da "tauba de tiro ao alvaro" para "o carro do Everaldo", aquele alvejado por 80 tiros no Rio de janeiro, em 7 de abril de 2019, quando o mesmo viajava com a a família para um chá de bebê:  

De tanto levar 
Flexada do seu olhar
Meu peito até
Parece sabe o quê
"O carro do Everaldo!"
não tem mais onde furar
Não tem mais...

As referências às "bala de carabina", "bala de revorve" e "atropelamento de artomove" seriam mantidas como estão, já que a tendência à liberação de armas e o afrouxamento da legislação de trânsito estão em voga, como se Adoniran previsse na sua canção profética. Hoje, seria censurada, não por uma censura oficial, mas por parte da população que embarcou nessa de reprimir tudo que pode indicar uma recusa à ideologia que chegou novamente ao poder. E assim vemos crescer o preconceito, a intolerância, a homofobia, a misoginia, e outras fobias em relação à diversidade, à cultura e à arte que não seja conservadora. Abramos os olhos nestes tempos turbulentos.