segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Sobre as andorinhas

Às andorinhas de Cassiano Ricardo e Sérgio Ricardo na voz de Ney dos Secos e Molhados denunciava em poucas notas o tempo trevoso...

sábado, 15 de agosto de 2020

Arara Azul de Lear

 Resultado da consciência coletiva a partir do trabalho das Ongs, hoje temos preservadas e fora de perigo essa maravilha que dá cor e vida ao nosso sertão.

terça-feira, 30 de junho de 2020

Passe para o futuro


Passe para o futuro.

Acordou com o ruído desesperador da ambulância e ficou aflito até que silenciasse por completo. A sirene era o som que mais se ouvia nos últimos tempos, junto com gritos de desespero que ecoavam na sua cabeça. Estava suado, o corpo tremia, tossia um pouco, mas ainda podia levantar o corpo para olhar pelo vidro. Estava dentro do carro que encontrou abandonado numa rua qualquer, não reconhecia aquele bairro. A chave estava na ignição e havia uma valise com roupas e chocolates no banco do passageiro. A respiração ofegante e o incômodo nos olhos tornavam embaçada a visão do exterior. O corpo doía, talvez pelo desconforto do assento de trás, talvez pela doença. O relógio marcava 17:38 e o caos lá fora escurecia o céu pela fumaça que também dificultava a sua respiração. Cremavam corpos em grandes fogueiras e o fedor empestava o ar. Queimar era mais viável que enterrar, já não havia mais terreno e nem pessoal para operar as máquinas. Precisava ficar ali quieto até cair o breu da noite, para poder seguir viagem, sair daquele pesadelo. A meta era continuar fugindo, sobreviver. Era um carro vermelho entre os carros abandonados nas ruas e ali estava longe da vista dos oficiais da saúde e dos militares. A força nacional que há mais de 100 anos não sabia o que era uma batalha agora se via na maior guerra que a humanidade poderia enfrentar. Olhou tudo a sua volta e viu que nada mais fazia sentido ou tinha utilidade. Sabia que o rádio no painel do carro estaria mudo. As comunicações haviam caído poucos meses depois da pandemia ter começado. O que distinguia as classes sociais já não servia às elites. Cartões de crédito, planos de saúde, contas bancárias, carros importados, nada servia para salvar vidas. Um vírus veio fazer a humanidade recuar até o tempo em que a única luta era pela sobrevivência. No aparelho de celular apenas a imagem de um mar tropical. Um alento. Lembrou como as redes sociais se tornaram o sentido da vida para a maioria da população mundial e como essa mesma rede levou ao caos da sociedade ao tornar-se o veículo de disseminação da ignorância. Ambiente perfeito para que um vírus biológico causasse tanto estrago. Pelas redes sociais a opinião teve mais alcance que a ciência e assim o mundo ruiu com sua população cega e ocupada. Jogado no assoalho, o velho jornal de meses atrás noticiava um balanço de mais de 1 milhão de mortos pelo vírus no mundo. As elites políticas e econômicas trataram de minimizar a ameaça e continuaram sua disputa irracional por poder. Para eles estava tudo bem que o grupo de risco eram os idosos e os doentes crônicos. Depois disso o contágio ficou sem controle e o caos foi implantado. Tinha um sonho de ver o mar antes de morrer. O risco maior era ser capturado para os campos de concentração criados pelo governo. Os capturados eram levados para o isolamento e lá morriam pela doença ou pelos testes experimentais que eram feitos em busca de uma cura. Muitos em estágios avançados da doença eram sacrificados pela escassez de leitos, medicamentos e de pessoal de saúde. Outros morriam por erros nos testes ou mesmo por falta de atendimento. Fugir de lugares como aquele seria impossível, estava fraco demais e seus sintomas iam além da febre. Tinha que sair da cidade assim que escurecesse, para não ser visto. Estava com fome, mas logo passou com a náusea ao ver pelo vidro embaçado cachorros comendo um cadáver ali bem perto. As imagens distorcidas na sua cabeça forçavam à vigília constante. As pessoas começaram a morrer com a falta de ar bem antes de criarem os campos de concentração. Essa ideia terrível deve ter vindo de algum fascista sem coração para reduzir os riscos de contaminação para os mais ricos que ficavam isolados em seus lares. O combustível do carro deveria dar para chegar até os limites externos da cidade, marcava quase meio tanque. Depois daria um jeito. O litoral não fica tão longe, pensou, talvez uns 160 quilômetros. Finalmente a noite chegou e aos poucos a movimentação foi cessando. Tomou coragem quando já não se ouviam passos, vozes ou sirenes. Abriu a porta do carro cuidadosamente e saiu abaixado. Precisava ver o perímetro e precisava conter a respiração e a tosse. Tudo estava deserto e frio, nenhuma luz de veículo ou lanterna de vigilância, nenhum vulto na penumbra. Apenas a luz trêmula de um poste que clareava as poças da calçada esburacada revelava uma finíssima garoa. Ficou com medo de ligar o carro e o barulho do motor chamar a atenção de alguma forma. Precisava ter cuidado, mas precisava sair dali. Deu a partida e seguiu noite adentro com os faróis apagados. A luz da lua rompia a fumaça que se confundia com as nuvens que se movimentavam ligeiras no céu. A febre aumentava e ele sabia disso pelo frio que sentia e pelo suor que entrava pelos olhos. Estava infectado e sabia que estava morrendo, mas antes queria ver o mar. Lembrou da sua vida antes da pandemia e uma angústia tomou seu peito, afetando ainda mais sua respiração ofegante. Lembrou da vida boêmia que levava antes da chegada da pandemia e os momentos felizes, os encontros, os amores, os excessos. Tudo foi se turvando na sua mente com a certeza de que aquele mundo acabou depois do vírus. Quando tudo precisou parar no isolamento, as pessoas passaram a comprar comida compulsivamente para estocar, com medo de faltar nos mercados. Limparam os estoques de remédios após anúncios de experiências mirabolantes de cura e isso deixou muita gente sem o tratamento adequado para outras doenças. As autoridades começaram a fechar as cidades e as fronteiras para evitar o contágio. Tudo virou um caos de uma hora pra outra e as pessoas começaram a surtar. Em pouco tempo já estavam saqueando as lojas, depois as residências. Matavam as pessoas dentro das casas para roubar-lhes a comida, nada mais tinha valor. Lembrou de quando os vizinhos mataram uma idosa que vivia sozinha em sua casa. Ela, indefesa, não apresentava resistência, apenas os sintomas da doença foi o bastante. Chorou. A humanidade revela seus instintos mais atrozes em situações de pavor e desespero. O mundo agora era ruína, vazio e medo. Sempre achava que os filmes apocalípticos eram fantasias da cabeça de gênios delirantes, agora vivia numa distopia mais torturante que as do cinema. Era real e sentia na pele, estava na sua retina, na sua mente. A tosse aumentava enquanto o carro deslizava pelo asfalto noite adentro. Carros abandonados nos acostamentos, alguns com corpos sem vida, completavam o cenário distópico. Sentia fome e não tinha mais chocolates, mas a vontade de chegar ao mar era maior. Sabia que estava morrendo, mas não morreria sem ver mais uma vez o oceano e disso tirava forças. Já sentia que sua a respiração estava forçada e o medo o invadia. Viu seus melhores amigos morrerem na sua frente sem poder fazer nada, era desesperador. Conseguiu ficar sem se infectar pelo maior tempo possível só com as medidas de isolamento e os cuidados com a higiene, mas o vírus começou a se espalhar pelo ar com as partículas suspensas. Nos dias em que o surto chegou ao ápice, as pessoas começaram a morrer na rua e os corpos ficavam lá na calçada, abandonados. Agora entendia a sabedoria milenar dos orientais em não entrar em casa com o calçado, ao não tocar as mãos nos cumprimentos, ao usarem mascaras nas ruas nos últimos tempos. Desfazia-se um preconceito, como outras coisas se desfizeram após o vírus. Fomos negligentes, pensou, o planeta respondia. O carro seguia noite a dentro na estrada deserta, já não havia carros abandonados e agora sabia que estava longe o suficiente daquela zona de guerra. Dirigia rumo ao litoral, mas sabia que o combustível não daria para chegar. Os olhos ardiam pela inflamação da conjuntiva e a tosse já era constante. Já não cobria a boca. Lembrou da sua mãe, da sua mulher e dos seus dois filhos pequenos. Agradeceu pelo acidente antes da pandemia, melhor assim. Chorou. Estava sozinho no mundo e o mundo agora o expelia com aos demais seres humanos. A febre já dava alucinações. Ouvia vozes como se alguém conversasse perto dali. Já estava numa estrada de terra quando passou por uma placa que dizia: Pedra furada a 13 km. Começou a acelerar mais que o normal, o único medo era de morrer sem ver o mar. Enquanto algumas cidades do mundo eram atingidas pela pandemia havia a sensação geral de que por serem distantes não haveria o que temer. O governo preocupado com a economia e em atender aos ditames do mercado não antecipou as medidas de prevenção. Lembrou das vezes que o presidente foi em cadeia nacional contradizer as orientações da Organização Mundial da Saúde. Em pouco tempo as pessoas tomaram as ruas e uma convulsão social levou ao agravamento do contágio. Tudo passava como um filme acelerado em sua mente. A barbárie estava só começando e logo pessoas de seitas cristãs atearam fogo nas imagens de nossa senhora da conceição e nossa senhora das dores na igreja que ele frequentava. Pessoas saiam às ruas conclamando a sociedade a recusar o isolamento e voltar ao trabalho, priorizando a economia mais que a vida. Outros invadiam hospitais tentando provar que não havia pacientes internados e que tudo era uma farsa. A Internet virou um campo de batalha. Os militares que já tutelavam o governo, assumiram definitivamente o poder. O mundo já registrava milhares de mortos em vários países que não seguiram as orientações dos cientistas. Já havia notícia na TV de que a cada dia triplicava o número de mortos. Sentia frio e suava como se numa sauna. Queria ver o mar. Lembrou da face de um Jesus negro que viu no cinema e que cristãos o repudiavam. Ele buscava naqueles olhos uma paz profunda. O motor deu sinais de que a viagem chegava ao final. Ainda estava escuro e a falta de ar fazia seu peito comprimir. Tossir doía. O carro morreu e ele abraçou o volante com um sentimento angustiante de impotência. Sabia que não estava longe. Saiu do carro e sentiu que as pernas estavam travadas pelo tempo da viagem. Tentou respirar fundo mas a tosse lhe tomava o fôlego. Sabia que estava morrendo quando cuspiu sangue. Saiu cambaleando pela estrada deserta por quase 1 km enquanto a luz do sol que nascia começou a brilhar. Já podia sentir o cheiro do mar mesmo com aperto no peito pelo ar que lhe faltava. Ouvia o som do mar mesmo que a tosse o confundisse. O terreno arenoso tornava a subida mais difícil, mas já podia ver o branco da espuma na areia. Caiu a poucos metros da praia, afogado sem tocar na água, sufocou. Ficou ali voltado para o mar e em seus olhos se via o indizível.
Acordou suado, ofegante e com o coração quase saindo pela boca. Puxou o ar como se emergisse do fundo do mar. Olhou em volta assustado e viu que estava em sua casa. Abriu a porta que dava direto para o milharal e respirou ar puro. O sol estava rompendo o horizonte e o cheiro de café trazido pelo vento renovava a sua esperança. Sua mulher e filhos estavam na cozinha. Depois da pandemia as cidades foram esvaziadas e grande parte dos sobreviventes ocuparam as terras que antes eram propriedades improdutivas do latifúndio. O céu voltou a ser azul, os rios limpos e a fauna e flora do planeta predominavam sobre o progresso de concreto que insistia e resistir em meio a ruína. Já se passara 10 anos desde que chegara ali e fincado suas raízes na terra que servia mais à vida dos homens que à ganância do agronegócio. Plantou ali a sua roça e a sua floresta para garantir a predominância da vida. As Muitas árvores junto ao milharal garantiam clima ameno, oxigênio puro, conforto para o trabalho e as frutíferas garantiam a vida. As cidades tentaram se recompor mas jamais foram as mesmas. Ainda estavam lá com suas selvas de concreto e seus habitantes atarefados com suas lutas por poder, suas disputas por espaço, seus artifícios para explorar os iguais. Preferiu a simplicidade do campo e buscar na terra o sentido da existência. A natureza se encarregou de colocar o homem em seu lugar e garantir-lhe o futuro. O caos vinha sempre como pesadelo para que ele jamais esquecesse quem era e o que queria deste mundo. Respirou fundo e saiu para o sol.

Inamar Santos Coelho – Bahia – 13/04/2020 – Em uma noite Durante o período de isolamento social.